Gustavo Scarpa entre o amor e o desencanto

Por Alexandre Alliatti, Diogo Venturelli, Felipe Zito, Leonardo Lourenço e Martín Fernandez – São Paulo

Quando era criança em Hortolândia, interior de São Paulo, Gustavo Scarpa só queria saber de futebol. Hoje, aos 28 anos, ele trata a bola como uma profissão – e vê sua personalidade melhor espelhada em atividades como a leitura, o rock, o skate, o wakeboard, o cubo mágico. O que mudou?

– O futebol não é o conto de fadas que eu pensava – explica.

O bicampeão da Libertadores pelo Palmeiras admite desconforto com o universo boleiro. Sofre com as músicas no vestiário, estranha as conversas, é seletivo com amizades. Mesmo assim, sente prazer quando está em campo, se emociona com o esporte (como no dia em que chorou ao saber que jogaria com Ronaldinho Gaúcho) e alimenta ambições. Uma delas é jogar na Europa.

– Acho que estou na idade certa. Quero viver isso enquanto sou jovem – diz.

Gustavo Scarpa é o novo personagem do Abre Aspas, quadro de longas entrevistas do ge. Em uma hora e meia de conversa, o meia detalha jogos marcantes pelo Palmeiras, recorda a saída turbulenta do Fluminense, fala sobre a criação sem a presença da mãe e admite irritação com a rotina de improvisações em campo. Confira os principais trechos no vídeo acima e no texto abaixo.

Gustavo Scarpa, meia do Palmeiras - Marcos Ribolli
Gustavo Scarpa, meia do Palmeiras – Marcos Ribolli

Quando pensamos em você, lembramos de um cara que curte ler, que gosta de rock, que anda de skate, que é vidrado em cubo mágico. E de futebol, você gosta?

Eu gosto pra caramba, amo futebol, amo o que faço. Mas encaro o futebol como uma profissão. Claro, uma profissão diferente, mas é a minha profissão. Então eu preciso às vezes de um escape para aliviar a tensão que o futebol traz. E encontrei nessas coisas um certo refúgio.

Mas o futebol te dá prazer?

Muito prazer. Quando o futebol não me der mais prazer, quando eu entrar em campo e não ficar nervoso, quando pegar para bater um pênalti e não tremer na base, chegou a hora de parar. Como ainda sinto essas coisas, pretendo continuar no futebol por um bom tempo.

Scarpa anda de skate na comemoração da Libertadores de 2021 - Cesar Greco/Palmeiras
Scarpa anda de skate na comemoração da Libertadores de 2021 – Cesar Greco/Palmeiras


Como foi sua infância? Você já tinha interesses diversos, além do futebol?

Pior que não. Minha infância foi só futebol. Teve uma época em que ganhei um videogame e comecei a jogar um pouco. Mas sempre fui muito de futebol o dia inteiro. Eu não soltava pipa. O negócio era futebol: sozinho, com um amigo, com uma galera. Nunca imaginei que fosse, sei lá, me apaixonar por instrumentos, apesar de que sempre gostei muito de música. Meu pai me influenciou muito no meu gosto musical, principalmente pelo rock. E aí, quando você começa a ouvir muita música, a música começa a se tornar uma parte importante da sua vida, e você acaba pegando gosto por instrumentos. Foi aí que comecei a criar esse meu primeiro hobby.

Scarpa na infância, pelo Guarani - Reprodução
Scarpa na infância, pelo Guarani – Reprodução

Você citou seu pai. Qual foi a importância dele?

Agradeço muito a Deus pelo pai que tenho, pela educação que tive. Acho que o principal ensinamento do meu pai foi sempre ter falado: “Pense por você mesmo, tome suas decisões e depois arque com as consequências”. Inclusive, hoje a gente tem muito atrito exatamente por causa disso, porque tenho minhas convicções que, com o passar do tempo, se tornaram diferentes das do meu pai. Mas essa é uma das principais coisas pelas quais agradeço muito a ele, porque tenho minha opinião, tenho meu jeito, tenho as coisas que acredito que são certas e faço independentemente da opinião dos outros.

Que tipo de atrito? Questões de futebol ou fora do futebol?

Extrafutebol. No futebol, sou um jogador que respeita muito o painel tático de uma equipe. Eu digo no extracampo. O skate mesmo é uma coisa, o wakeboard é outra coisa. As pessoas encontram maneiras de usufruir o tempo, de se distrair. E eu encontrei em coisas um pouco aleatórias, um tanto quanto questionadas. Mas é o meu jeito, é o que eu acredito que serve para mim, e eu faço.

Ele se preocupa que você vai se machucar, é isso?

É, bastante. No começo, a gente discutiu algumas vezes por causa disso. Mas a gente só vive uma vez. Se estou com a coragem agora, se posso me aventurar, por que vou esperar ficar com 40, 50 anos de idade para fazer as coisas? É claro que agora, com todos os títulos no Palmeiras, é mais fácil de falar: “Ah, tem coragem de andar”. Mas eu tive coragem de andar quando a fase não estava boa. Como eu disse, isso se tornou um escape para mim, e hoje todo mundo vê e fala: “Nossa, que legal, isso ajuda muito ele”. Se estivesse dando errado, seria a primeira coisa que o pessoal usaria contra, né? Mas é o que digo: eu tenho o meu pensamento e a minha visão. O que serve para mim, eu faço. Já sofri muito por deixar de fazer as coisas por causa de resultado. Hoje já não deixo de fazer.

Gustavo Scarpa investe em atividades como escape para o futebol - Marcos Ribolli
Gustavo Scarpa investe em atividades como escape para o futebol – Marcos Ribolli

O Palmeiras impõe algum tipo de restrição a essas atividades?

Eles pedem muito cuidado. Eu falo para eles: não pulo etapas nesses esportes em que me aventuro. Sei dos riscos que corro, mas procuro aprender devagar as coisas. Usei muito equipamento enquanto eu não sabia andar. Então esse cuidado no começo foi primordial para que eu perdesse o medo e aprendesse a técnica do skate e do wake. E hoje já estou um pouquinho melhor e consigo fazer um rolê bem legal.

Como é para você às vezes ser reconhecido por essas atitudes extracampo, não como um grande jogador?

Eu levo numa boa, porque antes do jogador tem a pessoa. As coisas extras que faço refletem mais quem eu sou do que propriamente o futebol. Como eu disse, encaro o futebol como uma profissão.

Não que eu seja o superastro, o anormal, mas acho que normaliza um pouco a pessoa Gustavo Scarpa. Eu fico muito feliz quando chego numa pista de skate e ninguém me reconhece. O cara me cumprimenta, não faz a menor ideia de quem eu seja. Eu gosto muito de parecer normal. Mas claro que com esse jeito, quando entro no mundo do futebol, eu sou o anormal, sou o diferente. Mas levo numa boa.

Em algum momento da carreira, esse comportamento rendeu algum olhar torto?

Geralmente, quando a pessoa é diferente, ela acaba se tornando um alvo. Realmente, acho que algumas pessoas me olham torto. Talvez eu frustre as expectativas, como algumas pessoas frustram as minhas. Isso é normal, ninguém é unanimidade. Tenho certeza de que também não sou, nem o meu jeito. Mas entra naquilo que falei: tem coisas que acredito que são certas, que funcionam para mim, que me ajudam. E isso para mim é o que basta.

Gustavo Scarpa antes de jogo pelo Palmeiras - Marcos Ribolli
Gustavo Scarpa antes de jogo pelo Palmeiras – Marcos Ribolli


Suas características pessoais dificultam ou facilitam que você faça amizades no futebol?

Acho que amizade é uma palavra forte. No futebol, vejo muitos parceiros. Em um dia, dois caras que nunca se falaram ficam íntimos só falando besteiras, uns negócios nada a ver. Comigo, realmente leva um pouco mais de tempo. Sou bem criterioso com as pessoas com quem me relaciono. Acaba sendo talvez um pouco mais difícil, mas quando acontece é uma amizade duradoura. Tenho vários amigos que fiz no futebol, que se tornaram padrinhos do meu casamento. Às vezes, demoro um pouco para criar certa intimidade com a pessoa, mas depois acaba se tornando um negócio duradouro.

E como você lida com esse ambiente boleiro? Olhando de fora, você parece não se encaixar.

É engraçado. Tem dia que não é tão engraçado, mas na maioria dos dias é. Tem dia que você chega lá mais de boa e aí o pessoal coloca uma música muito ruim. “Ah, legal, que música boba”. Mas tem dia que os caras extrapolam na escolha das músicas. Aí acaba sendo um negócio chato. Os assuntos às vezes… Mas não tive nenhum problema no Palmeiras, nem no Fluminense. O pessoal, apesar de zoar e tal, sempre me respeitou. Eu dou liberdade para brincadeiras, mas também não dou algumas intimidades para algumas pessoas que sei que abusariam da liberdade. É legal essa convivência. Acho muito interessante a gente sobreviver em um ambiente completamente diferente do que a gente quer, com pessoas de opiniões completamente diferentes. Eu parei um dia para pensar: cara, que da hora isso. Para mim, pode servir como aprendizado, como crescimento profissional, pessoal.

Fazendo um raciocínio de tentar pensar em uma pessoa completamente diferente de você com quem você tenha convivido em um vestiário, pensei no Felipe Melo. Por exemplo, com ele, que presumo que seja um cara muito diferente de você, como era a relação?

Relação só profissional.

Seus melhores amigos são de fora do futebol?

A grande maioria, talvez. Mas tenho muitos bons amigos no futebol. Mano, joguei com pessoas muito, muito legais mesmo. Tanto no Fluminense quanto aqui no Palmeiras. E são pessoas que vou levar para sempre comigo, tenho certeza.

Você jogou com o Ronaldinho Gaúcho no Fluminense. Era um momento em que ele já parecia mais interessado em outras coisas. Você era um moleque…

Eu estava com 21 anos.

É, você estava começando. Aí, de repente, aterrissa um cara do tamanho do Ronaldinho. Como foi aquilo para você?

Cara, essa experiência foi uma das mais marcantes, porque era o meu maior sonho jogar com o Ronaldinho Gaúcho. E eu sempre falava isso para as pessoas: “Mais do que jogar uma Copa do Mundo, eu quero ter a oportunidade de jogar com o Ronaldinho”. Ele era meu ídolo como criança. Analisando hoje, penso: “Putz, poderia ter sido mais legal se tivesse sido alguns anos antes”. Mas eu super entendo tudo o que ele passou. Imagino que o cara talvez não tenha tido liberdade para fazer nada. Aonde o cara vai, ele pode botar touca, botar óculos, se esconder, mas em qualquer país do mundo, ele é reconhecido. Acho que isso mexe muito com o cara. E é um cara que conquistou tudo que é possível no futebol.

Mas, para mim, marcou muito. Eu lembro que quando eu descobri que ele estava vindo, a gente estava em Curitiba para jogar contra o Athletico. Acho que ele postou um vídeo, mandou um vídeo, “e aí, torcida tricolor, tô chegando”. Nossa, já deu vontade de chorar ali na hora. Segurei, porque estava com os caras. Fui para o quarto, chorei, orei, agradeci muito a Deus, porque ia realizar um sonho profissionalmente. A gente acabou ficando mal no campeonato depois, mas ele não teve culpa nenhuma nisso. Foi uma baita experiência.

E você conseguiu falar isso para ele?

Eu fui muito… não sei se respeitoso, talvez burro. Não quis invadir, tomar uma liberdade que ele não tinha dado, apesar de o cara tratar todo mundo superbem. É um cara supertranquilo. Mas eu, na verdade, focava em ficar olhando para ele no treino, ver bater falta, fazer alguns negócios com a bola. Não tirei foto, não queria autógrafo, não falei nada, mas marcou muito. Foi um dos momentos mais legais na minha vida profissional.

Gustavo Scarpa com Ronaldinho Gaúcho pelo Fluminense - Bruno Haddad/Fluminense F.C.
Gustavo Scarpa com Ronaldinho Gaúcho pelo Fluminense – Bruno Haddad/Fluminense F.C.

No Fluminense, você viveu seu primeiro grande momento de rejeição. Você era muito querido pela torcida, e um dia procurou seus direitos para deixar o clube e virou um cara muito criticado. Como foi enfrentar isso?

Foi um momento difícil, porque apesar de não ter conquistado títulos de importância no Fluminense, eu tinha e tenho muito carinho pelo clube. A minha história no Fluminense é muito legal. Sair da forma como eu saí, nem eu gostaria, sabe? Não era a forma que eu tinha sonhado. Mas eu também não poderia ficar dependente da instituição para sempre. Como eu disse na época, a instituição, o clube é sempre maior do que o jogador. Mas o clube também não tem o direito de fazer o que quer com o jogador. Fui, tomei a decisão de ir para a Justiça por influência minha mesmo. Não teve empresário, nada. Eles me deram a opção, e como o Fluminense não estava me negociando de jeito nenhum, não me vendia, não me pagava, não me vendia, não me pagava, falei: “Ah, não dá para ficar aqui.” E aí decidi sair.

Entendo a raiva dos torcedores. Hoje, pelo pouco que acompanhei, pelo que algumas pessoas me mandam, muita gente já não tem tanta raiva, mas acho que é devido ao bom momento que vivi no Palmeiras. Se eu estivesse mal, com certeza iriam falar: “Olha lá, viu? Sabia que não ia dar nada, sabia que não ia virar nada”. Mas é um clube que tem meu respeito, a torcida tem meu respeito. Eu gosto de zoar, provoco às vezes, mas é só em resposta às provocações deles, nada no coração.

Hoje, olhando retrospectivamente, com alguns anos a mais de experiência, você conclui que tomou a decisão correta?

Sim. Na época, fiquei acho que três meses e meio parado. E analisava: “Cara, será que tomei a decisão correta?” Mas é muito injusto você olhar o resultado na sua decisão. Cara, você tem suas convicções, eles estão errados, você está certo, sua carreira é curta. Precisa pensar em você? Precisa. E eu não me arrependo. Mano, tudo errado, tudo errado. Como eu ainda posso pensar “será que eu estou certo”? Eu estava certo. Demorou um pouquinho, e aí eu olho agora, pô, campeão da Libertadores, duas Libertadores seguidas, vou falar que tomei a decisão certa, né? Mas não por isso, não pelos resultados, e sim porque era o que tinha que ser feito.

Scarpa nos tempos de Fluminense - Mailson Santana/Fluminense F.C.
Scarpa nos tempos de Fluminense – Mailson Santana/Fluminense F.C.

Como foi a sua infância? Você era pobre, de classe média, de classe alta?

Cara, não manjo muito dessa questão, mas acho que era classe média baixa. Nunca passei fome. Graças a Deus, meu pai conseguia me dar as coisas, conseguia dar um presente de Natal, comprava minhas chuteiras, coisas do tipo. Eu não passava necessidade. Não tinha do melhor para comer e para vestir. Carro velho, casa com goteira. Mas não era pobreza.

Você fala bastante do seu pai. E sua mãe?

Meus pais se separaram quando eu tinha nove anos. Meu pai e minha mãe tiveram dois filhos, eu e minha irmã, ela três anos mais velha. E aí meus pais se separaram. A minha mãe abriu mão da guarda, a gente ficou morando com nosso pai. E aí, ao longo dos anos, a gente foi perdendo o contato. Não tive mais contato com minha mãe, mais por opção dela no começo. Depois, foi quase que um consenso entre a gente. Mas meu pai, sem dúvida nenhuma… Claro que não dá para suprir tudo, mas na maior parte das coisas o meu pai conseguiu suprir.

Essa é uma questão importante para você? É uma questão que mexe com você?

Cara, tenho aprendido que todas as pessoas têm seus traumas da infância. Eu, sem dúvida, tenho os meus. De alguns, tenho ciência; de outros, não. Vão passando os anos, e você vai entendendo algumas coisas, olha para trás e consegue enxergar o motivo de as coisas acontecerem desse jeito, o motivo de eu ser desse jeito, de ter uma personalidade diferente, de ter algumas coisas na minha personalidade que podem ser explicadas pela separação. Mas para mim é um assunto superado. Já chorei muito por isso, já sofri, mas com o passar dos anos fui entendendo as coisas, e hoje é um assunto para mim supertranquilo.

Gustavo Scarpa: proximidade com o pai, distância da mãe - Marcos Ribolli
Gustavo Scarpa: proximidade com o pai, distância da mãe – Marcos Ribolli

Você sempre retorna para Hortolândia, sua cidade de criação. O que representa a cidade para você?

Eu acho uma cidade muito, muito legal. Acho que por nunca ter saído de lá realmente, sempre volto, toda semana, e isso me faz ter os pés no chão. Porque quando você alcança certa notoriedade, um sucesso profissional, é normal que acabe, sei lá, se achando às vezes mais do que realmente é. E estar ali na minha cidade me faz sempre lembrar da minha infância, de quando eu não tinha nada, de quando eu não era conhecido. Acho que isso me traz de volta para a terra.

Gustavo Scarpa com cubo mágico na entrada de Hortolândia - Reprodução
Gustavo Scarpa com cubo mágico na entrada de Hortolândia – Reprodução

Por que as coisas mudaram tanto para você no Palmeiras? O começo foi um pouco acidentado, e de repente as coisas começaram a dar certo. O que aconteceu?

Ganhamos um título (risos).

Mas em 2020 você vai para a Florida Cup e nem participa. Estava perto de sair. Teve um semestre pouco utilizado com o Vanderlei Luxemburgo. O que mudou para virar um cara de tanto destaque?

No meu pior momento no Palmeiras, trocou o treinador, e botei na cabeça que precisava me reinventar. Ali eu estava sem saída. Tem uma frase do Cesar MC que fala: “Me diz algo mais motivador do que não ter saída”. Não tinha o que fazer. Vou tentar me virar aqui, vou dar a volta por cima. Tive a oportunidade de sair, concreta mesmo, para o Brasil. Mas falei: “Cara, não quero me tornar um jogador que vai ter um empecilho aqui, vai para outra equipe, vai ter um problema lá, vai para outra equipe. Eu sei do que eu sou capaz e vou dar a volta por cima, cedo ou tarde”.

E aí, quando decidi isso, foi quase instantâneo. Peguei uma fase jogando menos, mas depois voltei na minha posição. Aí deslanchei de vez. E tinha sido a primeira vez no Palmeiras em que joguei na minha posição. E aí ficou todo mundo: “Nossa, olha o Gustavo Scarpa, é um meia”. Eu sou meia faz tempo, velho. Eu só estava sendo utilizado em outra posição. Todo mundo sabia que eu era meio-campista.

Você costuma falar sobre isso de jogar na sua posição. Como foi esse processo?

De 2018 até o Abel chegar, eu não tinha jogado de meia. Eu só jogava de ponta, ponta-direita, ponta-esquerda. Aí quando o Abel chegou, eu fui primeiro utilizado de lateral-esquerdo. Inclusive, eu prefiro jogar de lateral-esquerdo do que de ponta. E aí, quando me colocaram na meia e eu comecei a render, o pessoal falou: “Putz, ganhamos um meia”. Que eles já tinham há muito tempo! Eles só não utilizavam como meia.

Nessa história de posição preferida, dá para ter diálogo com o técnico? Ou ele é autoridade, ele escolhe e o jogador tem que obedecer?

Eu me posicionei sobre essa questão acho que desde o ano passado. Óbvio, você vai colocar o Scarpa ou vai colocar o (Gabriel) Veron como ponta se você quiser um time mais rápido? É injusto comigo me colocar de ponta. Agora, eu e ele na meia, eu sou mais eu, entende? Mas eu ou ele de ponta? Pô, o moleque é um fenômeno, sou mil vezes ele como ponta. Então eu falei assim: “Ah, cara, pessoal está começando a me cobrar muito por algo que não é minha função de origem. Me coloca na minha posição e me cobra.” Me colocaram na minha posição e não tinham o que falar, me elogiavam e tal.

E aí eu já tive essa conversa com o Abel, porque até com ele, como com os treinadores anteriores, eu sofri um pouco com isso. Pô, tá faltando alguém em alguma posição, coloca o Scarpa. Isso tanto em treino quanto em jogo. Isso começou a me deixar um pouco irritado. Já não estava gostando tanto. Chegou uma hora em que me posicionei. Falei: “Professor, quero jogar na minha posição”. “Ah, agora não dá, a partir do ano que vem”. E aí foi quando ele me deu oportunidade na meia.

E ele foi receptivo?

Foi, até porque no dia em que ele chegou, ele já fez uma dinâmica. Ele até falou no livro dele. Ele fez a dinâmica, espalhou as posições, falou: “Vai cada um aí na posição que prefere”. E eu fui na minha, fui na meia direita. Na época, só tinha o Viña jogando como lateral. “Tem mais alguém?” Aí acho que o Renan foi, e ele estava esperando eu ir. Acho que alguém deve ter falado para ele que eu jogava ali. E aí os caras: “Vai, Scarpa, vai, Scarpa”. Aí fui para a lateral, e ele “ah, beleza”. E aí acabou a dinâmica. E eu: “Não acredito”. Aí me colocou de lateral. Graças a Deus, fui bem, dei conta do recado como lateral, mas por ele já saber dessa minha preferência como meia, foi receptivo.

Abel Ferreira conversa com Gustavo Scarpa em treino do Palmeiras - Cesar Greco/Palmeiras
Abel Ferreira conversa com Gustavo Scarpa em treino do Palmeiras – Cesar Greco/Palmeiras


E você jogou finais de Libertadores e do Mundial de Clubes como lateral.

Eu realizei sonhos, fui campeão da Libertadores. Mas se fosse para escolher, eu escolheria ter jogado na meia. Independentemente da posição, foi um sonho realizado, foi top, uma experiência muito marcante, porque acho que nem eu sabia que podia marcar tão bem, que era tão defensivo. Por já ter essa missão antes do jogo, essa obrigação defensiva, acabei nem me preocupando em atacar, que é minha principal característica.

Mas é o que o Abel fala às vezes: não é o que a gente quer, é o que o grupo precisa, e alguns precisam se sacrificar. Só que tem hora que é chato, né, mano, ser sempre você o escolhido para se sacrificar.

Você já reviu o jogo contra o Chelsea?

Inteiro, não. Dá um pouquinho de aperto no coração, por ter sido tão perto e tão longe, sabe? O do Flamengo eu já perdi as contas de quantas vezes vi. Acho que passei um mês de férias quase todo dia vendo, sabe? Do Chelsea, vi menos. Mas quem sabe tenha outra experiência no futuro.

No jogo contra o Chelsea, teve algum momento em que vocês se olharam e falaram: “Dá para ganhar dos caras”.

Eu não tive esse momento com ninguém. Acho que nossa equipe não tem esse negócio de se olhar. A gente já tem tudo muito bem definido antes da partida, e aí todo mundo sabe o que tem que fazer e faz. Mas acho que cada um ali dentro de si mesmo tinha isso: “Putz, acho que a gente vai conseguir, acho que a gente vai conseguir.”

Você lembra qual foi o seu momento assim?

Ah, quando a gente empatou o jogo. A gente empatou, e aí acho que as duas, três bolas seguintes, os caras deram um passe para fora sozinhos, começaram a errar uns passes que eles não tinham errado na partida. Falei: “Ah, mano, será, será? Não acredito!” A gente teve uma chance ou outra ali. Falei: “Ah, não, vai para pênalti”. E aí em pênalti vamos ver o que dá, bate no meio e já era. Mas não deu. Acontece.

Scarpa na final do Mundial contra o Chelsea - Fabio Menotti/Palmeiras
Scarpa na final do Mundial contra o Chelsea – Fabio Menotti/Palmeiras


Scarpa, que livro você está lendo agora?

Eu confesso que estou travado um pouco na leitura porque estou estudando muito o cubo mágico, muito mesmo. Estou resolvendo vários modelos diferentes. Mas eu parei em um do Victor Hugo, chama “O homem que ri”.

Vou falar os nomes de alguns autores e você responde se já leu, beleza?

Beleza.

Dostoiévski?

Já. Monstro.

Kafka?

Sim.

Shakespeare?

Sim.

Abel Ferreira?

(Risos) Cara, pelos meus hobbies, você já vê que eu quero fugir do futebol. Um livro só falando de tática, de futebol, por mais que tenha sido o meu momento ali, eu esteja naquela história, ainda não li. Quem sabe no futuro?

Em 2019, Gustavo Scarpa dá dicas de livros no Palmeiras


Você não gosta de consumir coisas de futebol? Tipo o livro do Guardiola, o livro do Klopp?

Não gosto. Eu gosto de sair do mundo profissional em que eu vivo, sabe?

E jogo? Você está de folga, tem uma final da Liga dos Campeões. Você assiste?

Nossa, difícil, é muito difícil. Às vezes, sei lá, vou e assisto ao final do jogo. Recentemente que parei um domingo com a minha esposa, onde a gente estava… mas eu estava com o cubo mágico, então já estava rolando. Mas é muito difícil eu parar para assistir. Bem difícil mesmo.

Mas isso é algo que você sente ser necessário para continuar tocando sua profissão?

Eu acho que sim. Mano, tem moleque ali que resolveu o cubo mágico em um dia, em dois. Então, apesar de parecer que os moleques não têm conteúdo, tem muito moleque ali que tem conteúdo. E às vezes eu acho um desperdício o cara ficar no futebol, mano. Só futebol, só futebol. Tem tanta coisa legal, sabe? Tipo, vai jogar videogame, é Fifa. Vai assistir a um jogo, é futebol. Vai viajar, é Orlando. Eu falo isso pro Zé Rafael direto. Nunca vi, todo ano vai para Orlando, cara, todo ano. Vem cá, tem tanto lugar legal no mundo. Vai visitar Orlando uma vez, passa dois, três anos, vai de novo, mas, pô, todo ano? Acho que alguns caras são meio bitolados nessa coisa. Eu acho um desperdício, sabe?

Você já falou mais de uma vez que tem o sonho de jogar na Europa. Esse sonho é de jogar ou de morar lá?

Não tem como não colocar na balança a qualidade de vida num país europeu. Eu penso muito nisso também. É a questão profissional e também de… mano, ter essa experiência longe do país. Acho que estou na idade certa, sabe? Quero viver isso enquanto sou jovem. Não queria esperar até 40, 50 anos para viver em outro país. E sei lá, queria conhecer outra cultura.

Está longe o momento de essa decisão ser tomada?

Não, acredito que esteja perto. E acredito que é só isso que posso falar.

Você acha que jogar fora do Brasil aproximaria você da Seleção?

Acho que sim. Os olhos de todos estão voltados para a Europa. Claro que o Brasil é uma excelente porta para a Seleção. Mas acho que o principal é na Europa.

Gustavo Scarpa admite: é um bom momento para realizar sonho de ir para a Europa - Marcos Ribolli
Gustavo Scarpa admite: é um bom momento para realizar sonho de ir para a Europa – Marcos Ribolli

Como foi, em 2014, com 20 anos, participar daquele rolê aleatório de um amistoso entre Fluminense e seleção italiana, com o Pirlo em campo. Você pediu para tirar foto?

Esse dia foi engraçado. Eu nem ia jogar. Acho que alguém passou mal no dia. Era o Cristóvão Borges o treinador. No almoço, ele me avisou que eu ia jogar. Como assim, mano? Nossa, tremendo na base. Era um amistoso, mas um amistoso contra a Itália, tá ligado? Eu olhei acho que uns três, quatro anos depois o vídeo, e realmente falei: “Mano, que jogo aleatório”.

Mas eu não tenho muito esse negócio de tirar foto. Deixa eu ver: com quem acho que tiraria foto? Com o Eminem. Com o Dave Grohl, do Foo Fighters, acho que eu tiraria. Se o Taylor Hawkins (ex-baterista do Foo Fighters) estivesse vivo, acho que eu tiraria. Com o Chester Bennington (ex-vocalista do Linkin Park) também, se fosse vivo. Com o Chris Cornell (ex-vocalista do Soundgarden e do Audioslave), se fosse vivo, eu tiraria foto. Com o Jimmy Page (guitarrista do Led Zeppelin), eu com certeza tiraria uma foto. Com o Robert Plant (vocalista do Led Zeppelin). E acho que com o The Rock também (risos). Eu via muito WWE quando criança.

O pessoal nunca te deixa pôr música no vestiário?

No vestiário, não dá. Na hora que bate o som da guitarra, os caras já “não, não, não, tira”. Eu só consigo colocar na academia, em treino. Mas aí quem chega antes coloca. Mas eu também não coloco uns rocks muito pesados. Já coloco uma música mais de boa. Mas eles aceitam bem quando toca um Foo Fighters, um Red Hot. Mas é que eu não entendo: os caras colocam um pagode meloso, mano. Eu querendo agachar com 50 quilos lá, fazendo treino de força…

E o Belo cantando…

É! Como eu vou treinar com essa música, mano? Já pensei em usar fone, mas por enquanto, não. Não dá, cara.

É curioso: você fala que quando você era criança, era só futebol, futebol, futebol. E agora, quando fala de futebol, pontua que é uma profissão, que você precisa de outras coisas. Como a criança que só falava de futebol se transformou no atleta que hoje vê o futebol como profissão e tenta se afastar dele fora de campo?

Quando eu era criança, eu via o futebol como um negócio dos sonhos, um conto de fadas em que tudo é top, o estádio está cheio, você vai fazer gol. E aí você começa, 13, 14, 15 anos, a entrar nessa rotina de treino, começa a ir pro sub-20, às vezes pro profissional, e você vê: “Opa, mano, não é esse conto de fadas que eu pensava”. Não na questão de falhar, de não ter o sucesso sempre.

Mas você começa a ver coisas no futebol, coisas que acontecem em empresas, problemas, injustiças. Você vê gente passando uma imagem completamente diferente do que a pessoa realmente é. Você conhece a pessoa no dia a dia e você sabe que as coisas não são assim. Fui perdendo um pouco o encanto com o futebol.

Não na questão de jogar, de ser profissional, de ter metas, mas de ver o futebol como essa coisa de “ai, que legal, é o mundo dos sonhos”. Eu sei que não é bem assim. Mas isso de forma alguma tira a minha vontade de realizar sonhos. E na questão do jogo em si, o futebol, o jogo é top. Mas acho que o dia a dia, a rotina, me fez perder um pouquinho o encanto. E a pressão popular, talvez. Isso acabou me afastando um pouco do futebol nesse sentido. Mas não na vontade que eu tenho de viver o jogo ainda, sabe?

Recentemente, ocorreram vários casos de violência contra jogadores. Teve um caso no Corinthians, com o Cássio recebendo ameaças. Seu colega, o Jorge, foi atacado em frente ao CT. Você sente que é um momento em que os jogadores estão mais expostos do que deveriam? Tem algum temor com relação a isso?

Uma das coisas que mostram que o futebol não é essa beleza toda são esses casos de violência. Mano, não entra na minha cabeça como as pessoas que fazem essas coisas saem impunes. É muito absurdo. E nisso eu acho que a imprensa tem muita culpa, sabe? Como o cara vai, quebra o carro do cara e a gente não fica um mês falando disso? Como a gente não vai denunciar, não vai atrás? Não, dá uma notícia e tal.

Mano, o Cássio! O que o torcedor do Corinthians tem para falar do Cássio? Quem é o Cássio dentro do Corinthians? A história que o cara tem, o que o cara já conquistou.

Mas eu também não quero levar para essa coisa de título, porque se não tivesse conquistado nada, o cara não teria direito algum de fazer isso. O Jorge sofreu recentemente com isso. Eu não tenho explicação, não sei como nego vai para o estádio, faz um monte de coisa e não acontece nada. Como que nego entra no CT para bater em jogador? Aí você vai na rede social e todo mundo acha graça. “Jogador é milionário, tem que fazer isso mesmo”. E você acha que alguém vai se expor, vai botar a cara lá para jogar, para perder, para ter a família xingada no shopping, na rua, pro cara não conseguir sair com a família? Você acha que alguém vai fazer isso de propósito?

Scarpa, como você gostaria de ser lembrado quando parar de jogar?

Não sou muito dependente do reconhecimento alheio. Tenho minhas convicções. Sei da minha capacidade, do meu conteúdo. Me importo muito em cuidar das pessoas que estão perto de mim, da minha família, minha esposa, meus amigos. Penso muito nisso. Sei que esse reconhecimento é muito ilusório. Do dia para a noite, você apaga a luz e o cara que era parado em todo lugar para tirar foto acaba esquecido. Eu já tento não me apegar a isso, para não sentir falta quando parar. Mas se as pessoas me reconhecerem como um cara do bem, de bom caráter, que tentou transparecer um pouco de Deus, de coisas boas, se eu for lembrado dessa forma, está de boa.

Daqui a 30 anos, quando você estiver com 58 anos, o que você vai estar fazendo?

Se Deus quiser, tocando muita bateria, andando muito de skate. Recordista de algum cubo mágico. Sei lá, seis meses atrás eu nunca imaginaria que ficaria nessa febre de cubo mágico. Imagina daqui a 30 anos? Não faço a menor ideia. Ah, não, acho que sei: uma das minhas metas é saltar de paraquedas sozinho, fazer cursos para saltar sozinho. E isso eu acho que eu só vou conseguir depois que parar.

Gustavo Scarpa se diverte com planos para o futuro: bateria e paraquedas - Marcos Ribolli
Gustavo Scarpa se diverte com planos para o futuro: bateria e paraquedas – Marcos Ribolli

 

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