Garimpeiros e pecuaristas querem o status de ‘povos tradicionais’ e comitê analisa; veja em 7 pontos

Nesta quarta-feira (8), grupo de trabalho foi formado pelo Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Veja os argumentos de cada um dos lados.

Foto mostra área de garimpo ilegal na Amazônia, em Itaituba, no Pará — Foto: Lucas Landau/Reuters

Foto mostra área de garimpo ilegal na Amazônia, em Itaituba, no Pará — Foto: Lucas Landau/Reuters

Um conselho ligado à pasta da ministra Damares Alves começou a tratar na quarta-feira (8) do pedido de representantes de garimpeiros e de pecuaristas para obter do governo federal o status de “povos tradicionais”. A classificação atualmente é concedida a 28 grupos no país, entre eles, indígenas e quilombolas.

A divulgação da demanda gerou fortes reações de entidades, e até mesmo fez um dos próprios órgãos do governo federal (apontado como o incentivador da demanda) antecipar que é contra o pleito.

A análise do pedido entrou na pauta das reuniões desta semana do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), órgão que é ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

pauta das reuniões desta semana do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), órgão que é ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.  — Foto: Divulgação

pauta das reuniões desta semana do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), órgão que é ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. — Foto: Divulgação

Em um primeiro momento, foi divulgado que o conselho poderia votar o “reconhecimento” do pedido. Entretanto, representantes do CNPTC afirmam que houve erro no uso desta expressão na divulgação da pauta da reunião e que, na verdade, o que estaria em debate é a criação de um grupo de trabalho para avaliar quais os procedimentos necessários para novos “segmentos de povos e comunidades tradicionais”.

Após o tema ganhar espaço nas redes sociais e virar alvo de reportagens, a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR), também ligada ao ministério de Damares, negou ter patrocinado a demanda e divulgou ser contra a concessão deste título aos grupos.

Abaixo, em tópicos, entenda os principais pontos envolvidos na polêmica:

  1. O que querem os garimpeiros?
  2. O que se sabe sobre o pedido dos pecuaristas?
  3. Como a demanda foi recebida no conselho responsável pela análise?
  4. ‘Insulto’: as entidades reagem
  5. Mas o que são, enfim, os povos tradicionais e por que isso importa?
  6. O que diz o governo?
  7. Mas qual a vantagem deste título, sobretudo para os garimpeiros? O que está em jogo?

1 – O que querem os garimpeiros?

Em entrevista ao g1, Gilson Fernandes, presidente Federação Brasileira da Mineração (Febram), contou ter enviado um ofício no dia 30 de novembro para a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Ele é um dos representantes que reivindica a mudança de status da categoria.

Na opinião de Fernandes, os garimpeiros estão marginalizados. “Nós apresentamos ofícios, dados e estudos que comprovam que garimpeiros são povos tradicionais. E, inclusive, estamos trabalhando outros estudos com três faculdades, professores, antropólogos e historiadores que comprovam que garimpeiros são povos tradicionais do Brasil”, disse Fernandes.

Junto ao presidente da Febram, o pedido também é assinado Marcelo Norkey, representante da Cooperativa dos Garimpeiros do Médio Iriri, no Pará. Ele explica que é filho e neto de garimpeiros. E conta que a demanda começou a ser estruturada há dois anos.

“A gente é sempre discriminado, sofre racismo, preconceito. Não houve com a atividade garimpeira o que já houve com o quilombola, com o indígena, e outros povos tradicionais”, explicou.

2 – O que se sabe sobre o pedido dos pecuaristas?

No caso dos pecuaristas, a demanda é “uma situação específica da região do Bioma Pampa”, segundo explica Gabrielle Ücker Thum, parte do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), que atua como suplente, e membro do grupo Gestor do Comitê de Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa.

Ao g1, ela explica que “pecuaristas familiares do Pampa têm seu território disputado com a soja, com grandes estancieiros e a mineração”. Thum apresenta um trecho de um laudo e do Parecer do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa sobre o assunto. No documento, consta entre as justificativas: “o pecuarista familiar, pelo contrário, tem com o Pampa uma conexão que é de outra natureza, é simbiótica: se você não tem o campo nativo, você não tem o pecuarista familiar”.

3 – Como a demanda foi recebida no conselho responsável pela análise?

A notícia de que o conselho avaliaria o pedido ganhou primeiro destaque nas redes sociais. Para Carlos Alberto Pinto Santos Candidato, que foi nomeado como presidente do CNPCT em agosto de 2021, ocorreu uma “circulação errônea” de “uma proposta de pauta”.

“Só gostaria de informar a todos que a pauta não se tratava dessa questão (votação do requerimento). A pauta era de composição do grupo de trabalho que tratará de procedimentos para reconhecimento de novos seguimentos de povos e comunidades tradicionais”, disse Candidato.

Segundo o presidente do CNPCT, os pedidos foram encaminhados para o ministério, que “pediu que fosse incluído na pauta como reconhecimento”. E, ainda segundo o presidente, o conselho “deliberou que não se trataria de seguimento de novos reconhecimentos, mas sim de discutirmos como que seria esse processo”.

Nesta quarta-feira (8), Thum disse que foram selecionados os nomes da sociedade civil, defensoria pública, governo e entes convidados para compor o grupo de discussão sobre o tema.

“O objetivo do grupo de trabalho vai ser debater como funcionará o processo de reconhecimento, que tipo de documentações e tudo mais que for necessário para caracterização de um povo ou comunidade tradicional. Existem outras solicitações também”, esclareceu.

Em áudio divulgado nesta quarta-feira, mas gravado na terça-feira (7), Candidato havia dito que o grupo de trabalho não havia sido criado naquela data devido a um pedido do governo de fazer “um grupo paritário” e, como a proposta do conselho era de respeitar a composição do CNPCT, o acordo não foi fechado — por isso, foi necessário mais um dia para concluir a etapa.

4 – ‘Insulto’: posicionamento das entidades

O Movimento Amplo de Resistência ao Desmonte da Política Socioambiental (Maré Socioambiental) declarou, em nota de repúdio, que “a possibilidade de reconhecimento desses setores econômicos” como povos tradicionais é “no mínimo, um insulto ao histórico de lutas de Povos e Comunidades Tradicionais, que tem o próprio CNPCT como uma de suas conquistas”.

“Evidencia-se que o garimpo e a pecuária são um dos principais setores responsáveis pela maioria dos conflitos socioambientais que afligem populações tradicionais”, aponta o documento.

Apenas entre janeiro e agosto, a mineração desmatou 102,42 km² na Amazônia, o equivalente a mais de 10,2 mil campos de futebol, segundo dados do Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). A área contabilizadas nestes meses já era maior que o registrado nos 12 meses de 2020, quando a atividade devastou 100,26 km².

Já as pastagens ocupam 75% das áreas desmatadas em terras públicas não destinadas na Amazônia, segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Em pouco mais de duas décadas, entre 1997 e 2020, foram desmatados 8% das florestas públicas existentes da Amazônia Legal, um total de 21 milhões de hectares. A área devastada neste período é maior que o estado do Paraná.

5 – Mas o que são, enfim, os povos tradicionais e por que isso importa?

De acordo com o próprio governo, há 28 segmentos de povos e comunidades tradicionais catalogados. São núcleos que têm nos territórios em que vivem e nos recursos naturais que utilizam a condição de sua existência e de sua identificação como um grupo culturalmente diferenciado. 

Por isso, grupos como o Maré Socioambiental argumentam que há uma “nítida fragilidade de fundamentação e descabimento da proposta” por parte de pecuaristas e garimpeiros. Eles citam o decreto que define o que são os povos tradicionais:

“Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”, trecho do decreto nº 6.040/2007.

6 – O que diz o governo?

Em nota, a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR), para do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, informou “que são inverídicas as notícias de uma tentativa do Governo Federal em reconhecer garimpeiros e pecuaristas como povos tradicionais”.

“A informação não tem qualquer fundamento tendo em vista o procedimento normativo a ser seguido para aquela finalidade”, diz a secretaria. E, pontuou, ainda: “Diante do exposto, e considerando a repercussão descabida do processo, esta SNPIR antecipa o seu entendimento de que há temeridade no reconhecimento de garimpeiros e pecuaristas como povos tradicionais, o que, julgamos, poderia se tornar um campo fértil para violação de direitos humanos”.

7 – Mas qual a vantagem deste título, sobretudo para os garimpeiros? O que está em jogo?

Um outro assunto relacionado e em discussão está gerando certa apreensão em alguns especialistas. Um despacho da Advocacia Geral da União, de 8 de novembro de 2021, enviado ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) propõe o uso de Unidades de Conservação de Uso Integral – em que o objetivo principal é a preservação da biodiversidade, sem uso direto dos recursos naturais – ocorra por comunidades tradicionais. 

Fabio Feldmann, advogado e relator que ajudou a redigir a lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, avalia que o pedido de garimpeiros e pecuaristas em meio a este cenário causa incerteza sobre como as coisas podem seguir no futuro. 

“Tem uma certa coerência o parecer da AGU, que na minha opinião é um parecer que é equivocado, e a questão dos garimpeiros e pecuaristas. A gente vê que o [André] Mendonça, quando foi interpelado no Senado, justificou o desmatamento na Amazônia pela pobreza. Então, neste sentido, você entra nesta linha de combate à pobreza através de regularização dessas situações de irregularidade”, disse Feldmann. 

De acordo com Feldmann, já existem instrumentos legais que tentam conciliar Unidades de Conservação e uso por povos tradicionais. “Ou é Reserva Extrativista, ou Reserva de Desenvolvimento Sustentável. Você já tem categorias que permitem isso”. Com a aprovação das duas medidas em paralelo, segundo o especialista, um garimpeiro passa ser população tradicional e poderia se encaixar nas propostas da AGU. 

“Umas das hipóteses do parecer da AGU é a pretensão de população tradicional que não está na unidade, mas que pode usar recursos naturais da unidade. Com garimpeiro é até mais complexo, que precisa de autorização do governo federal, mas está de acordo”, explicou.  

Abaixo, veja reportagem especial do g1 sobre os Kalunga: maior território quilombola do país preserva o cerrado em Goiás

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