Como é ter Covid em país onde não existe caso oficial da doença

Turcomenistão é um dos poucos países, como a Coreia do Norte, que afirma não ter casos de coronavírus. Mas fontes independentes sugerem que nação está passando pela sua 3ª onda.

Sob governo de Berdymukhammedov, visto aqui em passeio de bicicleta no ano passado, imagem de nação saudável é peça central da propaganda estatal — Foto: Getty Images via BBC

Sob governo de Berdymukhammedov, visto aqui em passeio de bicicleta no ano passado, imagem de nação saudável é peça central da propaganda estatal — Foto: Getty Images via BBC

O Turcomenistão é um dos poucos países, incluindo a Coreia do Norte, que afirma não ter casos de coronavírus. Mas dados compilados por fontes independentes sugerem que a nação da Ásia Central está experimentando sua terceira e possivelmente mais forte onda de Covid-19.

Sayahat Kurbanov (nome fictício) não conseguia respirar. Seu fôlego havia desaparecido: era como se ele tivesse corrido uma maratona, a dor no peito era insuportável.

Kurbanov apresentava todos os sintomas do novo coronavírus. Mas havia um problema: no Turcomenistão não existem oficialmente pacientes como ele.

Quando Kurbanov ligou para uma ambulância no mês passado, o médico disse que ele estava com pneumonia e deveria ir ao hospital com urgência. Kurbanov sabia que os médicos do país se referiam a casos de Covid-19 como pneumonia.

No caminho para o hospital, ele conseguiu ligar para a clínica onde havia feito um teste de Covid-19 alguns dias antes. “Positivo”, ouviu uma voz baixa dizer. “O que é positivo?”, gritou Kurbanov, acrescentando: “É Covid?”. “Sim”, foi a resposta.

Só mais tarde, Kurbanov descobriu que nunca receberia uma comprovação impressa desse diagnóstico. Testes com resultado positivo não são notificados oficialmente no país.

O primeiro hospital ao qual se dirigiu se recusou a recebê-lo porque estava lotado.

“Quase morri no caminho”, lembra Kurbanov. “A falta de ar… o vírus progrediu tão rápido. Comecei a bater na janela e gritei: ‘Por favor, pare, não consigo respirar’. Eles me deram oxigênio, mas não ajudou muito.”

O hospital seguinte também se recusou a interná-lo, desta vez porque estava proibido de receber pacientes não registrados na capital, Ashgabat.

“Comecei a entrar em pânico. Perguntei ao médico: ‘O que devo fazer? Morrer aqui?'”

Kurbanov chamou um médico que conhecia e implorou por ajuda. Depois de vários telefonemas e conversas acaloradas, acabou sendo admitido.

Sua condição não mudou por cinco dias.

“Não conseguia respirar — era como se tudo dentro de mim estivesse colado. Tive ataques de pânico porque não conseguia respirar. Era como se tivesse mergulhado na água e não pudesse voltar à superfície.”

Kurbanov gritou para as enfermeiras lhe darem algo para aliviar a dor.

Ir ao hospital nem sempre é suficiente para receber tratamento no Turcomenistão, diz ele. Os médicos ignoram rotineiramente os pacientes e as enfermeiras não os examinam, a menos que alguém de alto escalão ligue para as pessoas certas.

Arma de propaganda

O hospital também não tinha funcionários em número suficiente, com algumas enfermeiras cuidando de mais de 60 pessoas. Houve ocasiões em que até uma faxineira administrou injeções, diz ele.

As enfermeiras compartilharam histórias sobre pacientes desmaiando e morrendo na frente delas porque não havia ventiladores disponíveis e as máquinas de oxigênio não funcionavam. Os médicos mudaram o tratamento de Kurbanov várias vezes.

Ele gastou cerca de US$ 2 mil (R$ 10,6 mil) em remédios e subornos, uma grande soma no Turcomenistão, e recebeu alta após 10 dias.

Veículos de comunicação sediados no exterior e não alinhados ao Estado informam agora sobre a terceira onda de infecções no país, mas quase todo mundo que vive no Turcomenistão tem medo de falar.

O site de notícias Turkmen.news identificou mais de 60 pessoas que morreram de Covid-19 desde o início da pandemia. As autoridades não divulgam casos de coronavírus.

O presidente Gurbanguly Berdymukhammedov, um ex-dentista, usa a imagem de uma nação saudável como sua principal arma de propaganda estatal. Admitir que o país está sendo afetado pela pandemia pode minar a legitimidade de seu regime.

No entanto, um caso no ano passado quase pôs fim à campanha de acobertamento. Um diplomata turco em Ashgabat adoeceu. Kemal Uckun tinha sintomas típicos do coronavírus: dor no peito, suor, febre. Ele foi diagnosticado com pneumonia.

Sua esposa, Guzide Uckun, enviou suas radiografias de tórax para hospitais turcos e todos confirmaram que ele tinha Covid-19.

Ela tentou desesperadamente levar Uckun de volta à Turquia, mas as autoridades turcomanas se recusaram a permitir o deslocamento em avião com infraestrutura médica. A permissão só foi concedida várias horas após sua morte.

O corpo de Uckun foi embalsamado e os peritos não conseguiram encontrar vestígios do coronavírus.

As autoridades turcomanas introduziram algumas medidas de quarentena para impedir a propagação da doença. Mas o governo reforça que, graças às suas “medidas preventivas”, o país continua livre da Covid-19.

Nenhum dos funcionários do hospital onde Kurbanov ficou internado usava as palavras Covid ou coronavírus, segundo ele.”Eles diziam ‘este vírus’ ou ‘esta doença'”, lembra. “Eu os pressionava, ‘Por que você não está dizendo o que é? É Covid?’ E eles balançavam a cabeça silenciosamente.”

Enquanto estava no hospital, Kurbanov recebeu uma mensagem de texto do governo com um alerta de saúde, recomendando as pessoas a usarem máscaras faciais por causa da poeira no ar.

“Estamos morrendo por causa do pó?”, diz. “Eles vão deixar as pessoas morrerem, mas nunca vão admitir que têm Covid.”

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