O disco italiano esquecido de Chico Buarque.

A antiga e profunda relação do artista com o país europeu ficou marcada em um disco e um show no ano de 1996.

Chico Buarque em apresentação no teatro Ariston de Sanremo, no ano de 1996 — Foto: STUDIO BRENZONI via BBC

Chico Buarque em apresentação no teatro Ariston de Sanremo, no ano de 1996 — Foto: STUDIO BRENZONI via BBC

A relação entre Chico Buarque e a Itália, antiga e profunda, pessoal e artística, ficou registrada num disco produzido por uma pequena gravadora italiana que acabou esquecido da discografia oficial do artista.

Intitulado “Ciao Ragazzo – Chico Buarque de Hollanda e gli amici italiani”, o álbum duplo, além de ser uma celebração da obra do brasileiro por seus amigos italianos, como indica o título, é também uma homenagem dele a Amilcare Rambaldi, um personagem único da cultura italiana, homem que viveu das flores e idealizou festivais de música e se transformou num grande incentivador da música autoral.

O disco registra uma noite de dezembro de 1996 e foi lançado na Itália pela gravadora Ala Bianca em 2011, no centenário de Rambaldi (morto em 1995). A BMG, gravadora de Chico à época, tinha planos de lançá-lo no Brasil, mas segundo a assessoria do artista, o projeto foi sendo adiado e acabou engavetado.

A noite no Club Tenco, uma associação fundada por Amilcare Rambaldi nos anos 1970 na cidade de Sanremo, no norte da Itália, teve a participação de artistas italianos em início de carreira, como Tosca Donati e Vinicio Capossela, e nomes já consagrados e com antigas relações com Chico, caso de Ornella Vanoni e Enzo Jannacci, cantor que gravou uma versão de Pedro Pedreiro em 1968.

Um ano antes, os italianos já tinham sido apresentados à música do jovem compositor brasileiro com La Banda na voz da popular Mina.

Adepto da “arte do encontro” preconizado por Vinicius de Moraes, Rambaldi virou uma figura apreciada pelos músicos brasileiros que se apresentavam na Itália graças ao compositor e produtor Sergio Bardotti, amigo e parceiro italiano de Chico, que por sua vez apresentou Bardotti a Vinicius, rendendo novas parcerias.

O círculo explica o motivo de Chico Buarque ter saído do Brasil naquele final de 1996, num ano em que não fez nenhum outro show, para se apresentar no teatro Ariston di Sanremo em homenagem a Rambaldi, que ele conheceu em 1981, quando foi premiado no Tenco.

“Eles só se encontraram nessa ocasião, mas Chico entendeu o personagem que era Rambaldi e o estimava muito. Entre eles estava Bardotti, claro. Ele nem cobrou cachê por aquela apresentação”, recorda Enrico de Angelis, diretor-artístico do Tenco à época.

Chico Buarque na conferência em homenagem a Sergio Bardotti em 2017, para lembrar os dez anos da morte do italiano. O homem em pé, que conversa com Chico, é Enrico de Angelis, também citado — Foto: Reprodução via BBC

Chico Buarque na conferência em homenagem a Sergio Bardotti em 2017, para lembrar os dez anos da morte do italiano. O homem em pé, que conversa com Chico, é Enrico de Angelis, também citado — Foto: Reprodução via BBC

Nascido em Sanremo, cidade à beira-mar no norte italiano com grandes floriculturas, Amilcare Rambaldi se dedicou profissionalmente à exportação de flores. Partiu dele a ideia de criar um evento de música na cidade, origem do festival de Sanremo, cuja primeira edição aconteceu em 1951. Ainda hoje o festival é o maior da Itália, com edições televisionadas e grande repercussão nacional.

Rambaldi criou o clube e o prêmio Tenco – homenagem ao cantor Luigi Tenco, morto em 1967 e autor do clássico Ciao amore ciao – em 1974. O objetivo era rivalizar com o próprio Sanremo, existindo quase como seu lado B: dedicado à música autoral, italiana e estrangeira, e tradicionalmente abrigando novidades e veteranos num clima mais relaxado e festivo.

Na segunda edição do Tenco, o artista premiado foi Vinicius de Moraes, início da longa relação com a música brasileira. “O nosso grande intermediário sempre foi Bardotti”, conta Enrico de Angelis.

Desde então, já foram homenageados Tom Jobim, premiado em 1990 e que se apresentou naquela edição com Caetano Veloso, Gilberto Gil (em 2002) e Milton Nascimento (2008).

Quando foi premiado em 1981, Chico compareceu ao evento, mas como estava afastado dos palcos, não se apresentou. “O show demorou 15 anos”, ressalta De Angelis.

Gravadora de Chico acabou não lançando disco com gravação ao vivo ocorrida em 1996 — Foto: STUDIO BRENZONI via BBC

Gravadora de Chico acabou não lançando disco com gravação ao vivo ocorrida em 1996 — Foto: STUDIO BRENZONI via BBC

Na apresentação registrada em Ciao ragazzo, Chico canta com Enzo Jannacci (morto em 2013) e faz solo dois covers do cancioneiro italiano. Um é Genova per noi, música de Paolo Conte que ele conheceu escutando rádio durante uma viagem a Marrakesh, já gravada por ele num dueto com Zizi Possi. O outro é Anema e core, canção celebrizada pelo napolitano Roberto Murolo e cantarolada pelo pai, Sérgio Buarque de Holanda, que copiava até o dialeto de Nápoles (devidamente replicado pelo filho no show).

“Todo ano fazíamos a gravação dos participantes do Club Tenco. O Chico autorizou e depois ouviu o disco”, afirma Toni Verona, diretor da Ala Bianca. Apesar de desconhecido do público brasileiro, o disco está disponível em plataformas como Spotify.

“É raro um disco todo em homenagem ao Chico. Um disco que ele topou e ainda participou. Mostra um retorno dele ao sentimento de pertencimento com a Itália”, diz Guilherme Tauil, pesquisador da obra do artista.

Roma e a Itália deixaram boas lembranças na família Buarque de Holanda. A primeira passagem de Chico no país se deu em 1953, ainda criança, quando todos os irmãos e a mãe, Maria Amélia Cesário Alvim, foram acompanhar Sérgio Buarque de Holanda, à época professor da universidade Sapienza de Roma. Eles ficaram por lá cerca de dois anos, período que Chico aprendeu o italiano e conheceu algo da cultura local.

Mais tarde, no final de 1968, quando já era um artista consagrado e com músicas gravadas na Itália, ele deixou o Brasil com a atriz Marieta Severo, num exílio voluntário, logo após a ditadura baixar o AI-5 (Ato Institucional nº 5, marco do período mais duro da ditadura militar). Silvia, a primeira filha do casal, nasceu em Roma.

“Minha mãe sempre repete que os dois anos passados nessa cidade foram os mais felizes de sua vida”, disse o cantor numa entrevista ao jornal La Repubblica em 2000, quando visitou Roma para receber uma homenagem da prefeitura. Maria Amélia morreu em 2010.

Chico canta com Enzo Jannacci — Foto: STUDIO BRENZONI via BBC

Chico canta com Enzo Jannacci — Foto: STUDIO BRENZONI via BBC

 

A cantora Miúcha, sua irmã mais velha, dizia que Roma era sua cidade preferida, onde mais gostou de viver. Morta em dezembro de 2018, no final da vida ela expressou a amigos o desejo de retornar à cidade e tinha na cabeceira um guia dos seus lugares misteriosos.

A carreira de Chico na Itália não decolou comercialmente, mas deixou raízes profundas, como mostra o disco-tributo. No seu segundo período romano, ele gravou dois discos pela RCA, um deles Per un pugno di samba, com orquestração feita pelo maestro Ennio Morricone. Após 14 meses na Itália, ele e a família retornaram para o Brasil em março de 1970.

O guitarrista Irio de Paula, brasileiro que chegou em Roma no final dos anos 1960 para acompanhar artistas radicados na Itália à época, como Elza Soares, participou da gravação de Per un pugno di samba. Ele foi o único brasileiro escalado ao lado dos italianos para a homenagem a Chico em 1996, que resultou em Ciao ragazzo. Outro grande violonista, o italiano Armando Corsi também foi escalado na apresentação. Ele abre o disco com um instrumental de Samba de Orly, música que faz referência no título ao aeroporto de Paris mas que foi composta em Roma por Chico, Toquinho e Vinicius.

“Foi uma noite inesquecível”, diz a cantora Tosca Donati, que tinha na época 20 e poucos anos e cantou Facendo i conti, uma versão feita por Sergio Bardotti para Trocando em miúdos. Pouco depois, ela gravou a canção num estúdio em Roma com a participação de Chico Buarque.

“Naquela ousadia da juventude, perguntei se ele topava gravar ela comigo. Ele aceitou, mas desde que viesse gravá-la na Itália”, recorda a cantora, que alimenta o sonho de, um dia, fazer o musical italiano da Ópera do malandro.

 

Chico e Bardotti se conheceram no Rio de Janeiro em 1968, pouco antes de o brasileiro se mudar para a Itália e logo depois de o italiano ter uma música premiada no festival de Sanremo, motivo da viagem ao Brasil.

A relação se estreitou em Roma, mais tarde, e prosseguiu nas décadas seguintes, dando frutos como o musical infantil Os Saltimbancos. Cinco anos mais velho que o amigo, Bardotti morreu em 2007. Num evento realizado em 2017 para recordá-lo nos dez anos de sua morte, o compositor brasileiro participou conectado desde Paris.

“Chico costumava vir na Itália de dois em dois anos, e nós costumávamos ir ao Rio com a mesma frequência”, conta Carmen Di Domenico, viúva de Bardotti e que ainda guarda em casa o prêmio Tenco que o brasileiro recebeu em 1981.

“Ele trouxe a premiação para nossa casa naquele ano. Chico foi deixando, disse que pegaria na próxima vez, na próxima, e está aqui até hoje”.

Chico viveu na Itália na infância e depois, em um exílio voluntário — Foto: STUDIO BRENZONI via BBC

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